Foto: Marcel Gussoni
Cerveja, gastronomia e
harmonização
“Gastronomia é comer olhando pro céu.”
(Millôr Fernandes)
“Quem não se importa com o próprio estômago, dificilmente se irá importar com outra coisa.”
(Samuel Johnson)
“Comer, beber, e amar… O resto não vale um níquel.”
(Lord Byron)
Desde sempre a cerveja manteve uma forte e próxima relação com os alimentos, sua origem agrícola e associação à produção de pão é uma demonstração inequívoca disso.
Entretanto, comumente, a cerveja é vista sem protagonismo no universo da gastronomia, ainda que isso tenha mudado muito, graças ao trabalho de chefs jovens e ousados ou mesmo de mestres como o cervejeiro da Cervejaria Brooklin (New York) e gastrônomo Garrett Oliver. Isso ocorre – especialmente no Brasil – muito em função de a cerveja ainda ser vista prioritariamente dentro de um contexto associado a entretenimento festivo e descompromissado, o que pode ser ótimo, porém essa visão esconde inúmeras possibilidades sensoriais representadas pelos mais de 100 estilos de cerveja aos quais hoje se tem considerável acesso em várias cidades brasileiras.
Por outro lado, a cerveja destaca-se cada vez mais como bebida gastronômica em razão da carbonatação que empresta adstringência a qualquer harmonização, além dos sabores tostados, defumados e caramelizados que são únicos entre as bebidas fermentadas. Em função dessas novas possibilidades, iniciou-se um processo de revitalização da cerveja como companhia de pratos sofisticados nos melhores restaurante do mundo, sem que ela perca o aspecto democrático e informal que a popularizou em praticamente todo lugar.
Sobre a harmonização entre cervejas e comida, é crucial o conhecimento prévio tanto do perfil organoléptico da cerveja quanto dos ingredientes e do modo de preparo do prato com o qual se quer harmonizá-la. De outra forma, pode-se correr riscos e aventurar-se por combinações inexploradas e às cegas, o que pode no mínimo ser instrutivo, como também pode ser tremendamente prazeroso.
No universo teórico da harmonização, é mais fácil combinar pratos e cervejas por semelhança, por exemplo, um prato delicado com cervejas de sabores discretos e equilibrados ou pratos gordurosos e condimentados com cervejas potentes e picantes; por outro lado é possível harmonizar também por contraste ou por corte. Neste caso, uma cerveja amarga e alcoólica pode “cortar” os sabores excessivos de uma sobremesa com massa amanteigada e recheio muito doce. Naquele, pode-se pensar em opostos que se somam ao invés de competirem como é o caso de uma Dry Stout harmonizada com sashimi. Entretanto, essas relações, embora elogiadas por muitos, podem não agradar há outros tantos, todavia algumas informações gerais podem ser consideradas na construção de harmonizações entre comida e cerveja:
1. O amargo do lúpulo limpa o paladar de pratos muito gordurosos ou potentes.
2. As notas torradas do malte podem remeter a aromas e sabores caramelizados, achocolatados, de café, de toffee ou até de defuma, o que pode harmonizar com sobremesas mais potentes baseadas em chocolate, café, caramelo, etc., ou mesmo assados caramelizados.
3. A levedura pode emprestar à cerveja aromas frutados e condimentados, o que pode combinar com sobremesas frutadas ou mesmo com pratos mais complexos e potentes.
4. A água ajuda no delineamento do corpo e da densidade de uma cerveja, por isso pode auxiliá-la a ser leve ou encorpada.
5. Adjuntos cervejeiros como especiarias, frutas, ervas, etc., podem conferir as características mais variadas às cervejas, o que amplia o espectro de possibilidades de harmonização delas até com as comidas mais exóticas e inusitadas.
6. Cervejas da família Ale são normalmente mais potentes, condimentadas e alcoólicas. Já as da família Lager são conhecidas no geral pelo seu perfil leve e refrescante. As da família Lambic são famosas pelo seu sabor intenso, acético e, por vezes, amadeirado.
7. A bebida é a acompanhante do prato, e não o contrário, cuidado para não sobrepujá-lo com uma cerveja que concorra com ele a ponto de boicotá-lo.
8. Cervejas oriundas de uma determinada região de um país costumam combinar bem com os pratos típicos da gastronomia local.
9. Comidas muito picantes ou gordurosas harmonizam com cervejas amargas e bem carbonatadas.
10. Cervejas escuras harmonizam geralmente bem com assados, churrasco, molhos oriundos de reduções lentas e sobremesas a base de chocolate.
11. Cervejas ácidas combinam bem com sobremesas cítricas ou “cortam” adequadamente comidas muito gordurosas.
12. Cervejas de sabor delicado e leve harmonizam com saladas, peixe e frango grelhados.
13. Com frituras em geral, cervejas claras, bem carbonatadas e amargas são combinações consagradas.
Para além disso, é fundamental compreender que a cerveja é farta em possibilidades de combinação quando pensamos o amplo espectro de aromas e sabores possíveis nos diversos estilos de cerveja, como são os casos dos fortes aromas e sabores defumados de uma Rauchbier combinados com um assado de porco bem condimentado e, talvez, caramelizado; ou a delicadeza refrescante de uma Witbier harmonizada com uma sobremesa cítrica; ou mesmo harmonizações clássicas como cervejas muito lupuladas com pratos condimentados; ou cervejas claras de trigo com pratos grelhados, frutos do mar, peixes, saladas e queijos delicados; ou uma Lambic Fruit como acompanhamento para sobremesas a base de frutas in natura ou em calda; ou ainda uma sobremesa de chocolate amargo com alguma Stoutpotente e aromática.
Contudo, o importante é experimentar combinações além das consagradas ou tradicionais quando se quer novas experiências e, depois, voltar para o porto seguro do conhecido e já experimentado, ou seja, apesar das muitas regras e de livros dedicados ao tema da harmonização de comida e bebida, deve-se buscar combinações que agradem ao seu paladar. Por isso, textos como esse devem ser tomados menos como referencial e mais como ponto de partida para uma nova ou melhorada relação entre esses dois universos, complementares e tão importantes para o desenvolvimento intelectual, cultural e social do ser humano como são a comida e a cerveja.
Para ouvir harmonizado com uma bela cerveja escura, por exemplo, a excepcional Benedith Gaulesa do amigo e mestre-cervejeiro Roni Godinho, uma playlist focada em Black Music, espero que gostem.
Música negra brasileira – influências estrangeiras